sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Questões paralelas

Ele seguiu adiante sem consultar a ninguém. E eu entendi tudo, sem sair do lugar, batucando nas teclas um “dom dim, dom drean, doro rorim do dom dom dom”. Entre a cuíca e o fone de ouvido, uma letra aguda latina me disse, “bora sambá na lama de sapato branco por aqui também”. Depois desse dia, meus pés pretos se casaram com a provocação e minhas pernas jamais desligaram a aflição do amor, feito de longe.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Dirceu Digital



Marília mora longe,
lá onde coração já 'tá.
Indo p'ras bandas se foge
do peito vazio que há.

No peito quieto há lacuna,
e em paz não pode ficar;
pois, sem coração, o silêncio
jamais será bom lugar.

Nem mesmo o silêncio da rede,
o linkar de barulho infinito,
não cala teu jeito bonito,
que o caos quis me mostrar.

O coração, no fundo, já sabe
do conforto que Marília dá.
Ainda que em beijo distante,
silêncio algum constrangerá.


PS: Olás! Poeminha requentado, mais pra dizer que cheguei. É uma honra inoxidável estar aqui.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Geladeira de samba

Aconteceu perto de uma mistura de tempo e náusea, que escorria. Quase nem dez segundos depois, Vênus acenou aos berros da décima segunda casa dizendo preu olhar pra margem esquerda. Puta que pariu! Era o tal do preto e branco em cores. Mais algumas metades de paisagem, o Sol sai correndo e um silêncio de próteses rarefeitas afoga a insônia anestésica no torto da curva do rio Hudson.
E eu que só tinha passado por ali a procura de um lixo pra jogar minha caneta, sem tinta.

* retrato, a gettyimages, a da página 11.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Conversa de Amor

- Você atropelou os buracos que intercalavam meu caminho.
- E você chegou, chega de saudades.
- Mas eu vim intempestuosamente como quem acaba de desatar a camisa de força.
- Gosto do seu figurino e quero te colecionar, como figurinha carimbada.
- Gosto da sua bagagem quero te viajar como um visto p/ país qualquer.
- Ok. Não importa se vamos pro sul ou pro norte. Você é o meu passaporte!


* O beijo, Gustave Klimt.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007


e agora José?

A Gente daqui dia desses brincou de greve de fome, de fome de guerra. Da janela do café ao lado do franco-alemão, no segundo piso, dava para sondar a situação antes de voltar pra rua. Ainda que criada no interior do MT em um tempo em que prefeito bebia e atirava pro alto na frente de casa, não sei distinguir um tiro de bala com um de foguete. Praça cheia de barracas, colchões, cartazes e gritos de ordem. ¡No tenemos miedo, carajo! Vôzinhos ambulantes vendedores de café lá embaixo brigando por troco. Rapazes de extrema direita com a bandeira do departamento, feito capa de herói, seguindo indiscretamente supostos-anônimos-perigosamente-parecidos-com-cubanos-de-mierda, crianças jogando uma pelada imaginária e batendo a bola na janela dos carros que mal estacionados são marcados pelo governo com uma tarja atravessada no vidro traseiro: INFRATOR! O tio cadeirante, que diariamente fica na porta da igreja esmolando os gringos que passam, amarrou ao lado seu potinho para os ouvidos protegerem dos estampidos... Assim essa gente com medo brincava de me assustar, de tão assustada que estava.
Vai ter balaço na sexta, não vai.
A praça tá perigosa, não tá.
Vão cortar a água, não vão.
Pode sair no sábado, não pode.
Tem que estocar comida, não tem.
Vai ter guerra civil, não vai.
Já tem milícia na rua, não tem.
Na parte cruceña do país do locoto um extremo era medo, o outro confiança e o grande meio, amorfo e faminto, indiferença. Disse-me um amigo, callejero como eu, nesse mesmo café na sexta passada, o que sentem eles, os indiferentes. Disse que com Evo ou não, com Tuto ou não, com constituição ou não, com autonomia ou não, com esquerda ou não, trabalharão hoje, comerão ontem e assim, correndo de gases, gozando nos lares e engolindo TV, viverão e morrerão inertes esperando.. esperando Godot. Conheço essa prosa. No começo das contas declararam-se autônomos. Sábado. Estatuto nas mãos. Parque cheio de músicas e danças e vírgulas e dúvidas... A gente, que é sem nome.. acho que zombam da gente, José... e agora cadê?
* Nota dos compañeiros de milongas: para quem não sabe, Cátia é uma dessas autênticas deusas do esquecimento. Migrou do Sul do Brasil até o interior do Mato na mesma rapidez que deixou Cuiabá pra estudar Relações Internacionais na UNB. Há alguns meses soubemos por carta escrita em braile que uma força não identificada havia usurpado seu corpo branco para as imediações de Santa Cruz de la Sierra.

sábado, 15 de dezembro de 2007

A morte de Coquinho

Gatos são animais majestosos. Tenho gosto em apreciá-los com suas poses fotogênicas e flexibilidade plástica. Parecem saber de sua prodigiosa natureza e vivem a ‘brincar de esfinge’. Já perdi a conta de quantos criei. A opção de tê-los em casa sempre foi em comum acordo com meus familiares. Meus parentes felinos são como uma extensão familiar. Assim, a perda desses bichos de estimação, é dolorosa. Coquinho, por exemplo, entrou em minha casa há alguns anos. Já bem adulto. Surgiu no portão, chamei-o e ele veio se chegando com a docilidade dos siameses e seus olhos azuis. Não sei de onde veio. Apareceu e foi entrando. Ficando. Mostrando-se um bicho de boa índole sem radicalizar na questão da territorialidade. Impôs uma convivência perfeitamente pacífica com os outros felinos que já habitavam minha casa. “Será que é macho ou fêmea?”, indaguei-me quando chegou de mansinho. Olhei para suas partes recreativas e vi dois coquinhos. Ficou-lhe o nome na hora.
Já chegou velhão e já faz um ou dois anos que se torna cada vez mais ‘pepé’. Fica em locais estratégicos da casa como se fosse um bicho empalhado. Nem o pelo farto esconde mais sua magreza. Anda meio surdo e quando dorme, parece que treina para morrer. Às vezes deita-se próximo e de frente para a parede, como as crianças ficavam de castigo antigamente. Tenho dois bichinhos bakairi de madeira em casa – uma tartaruga e uma paca (ou filhote de anta, sei lá) – que de vez em quando coloco perto de Coquinho, só pra ele ter companhia. Coquinho, nos últimos dias, parecia se aproximar mais e mais do seu encontro marcado com a indesejada.
No último sábado a ressaca me obrigou a ir até a farmácia. Era um dia de neosaldina. Chego ao portão e, na calçada em frente de casa, lá está um belo siamês endurecendo a mercê das moscas. “Porra Coquinho, tinha que morrer justamente neste sábado de dor de cabeça?”, sentencio. Mas respeito os bichos de estimação e ritualizo a partida deles. Voltei até a cozinha e peguei um saco de lixo preto. Fúnebre. Acomodei Coquinho nele e torei para as cercanias do cerrado próximas ao meu periférico bairro. Numa quebrada, com o coração, além da cabeça, me doendo, deposito Coquinho e cubro-o com pedras. Nenhuma lágrima me sobrou. Só tristeza cinza. Cinza é também um pouco a cor dos siameses.
Onze e trinta da manhã. Solão na cachola, finalizo a breve e solitária cerimônia da viagem de Coquinho. Passo na farmácia, compro minha neosaldina e tomo com coca-cola. A dor de cabeça já vai passar, mas Coquinho continuará doendo na sua ausência mais um tempinho. Aviso a mulher da morte de Coquinho, o que lhe provoca uma interjeição muda de sofrimento. O filho acorda e deita-se na rede da varanda dos fundos. Também é informado que Coquinho já não está mais entre nós. Há um silêncio vazio na casa. Coquinho era gente boa, não enchia o saco de ninguém.
“Êeee pai,... mentiroso!”, diz o filho, sem motivo aparente. “Olha o Coquinho aqui”. E revejo Coquinho pescando pedacitos de ração no prato dos gatos. A tristeza recente foi-se embora e minha cabeça também já não dói.
Coquinho continua andando furtivamente pela casa, que nem um fantasma esquálido. ‘Pepé’ toda vida. Coquinho vai morrer, eu sei.

* Fotografia de Fátima Sonoda.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007




I Quattro Mori


Antes que eu abrisse a porta eles entraram: Don Juan e Don Genaro, justamente pela fresta que me dava frio no corpo todas as noites. Peguei o isqueiro embaixo do globo e acendi uma vela de verão para distrair o cheiro de vinho tinto respirando no ar. Vestindo vento dançamos, os três, intermináveis cantigas mexicanas intercaladas com Caymmi e Noel Pink*. Engulimos uns dos outros todo o roxo que pela manhã escondíamos usando paisagem. Reavaliamos cada pedaço de verso, brincando, com a sombra do barbante mergulhado em parafina. Fomos epidemia enquanto contávamos os discos vadores que se escondiam atrás das luzes de Natal.
As paredes tentavam suicídio, roendo as unhas.

* sua caneta não vejo. e quero. só. como em tudo. a sós.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

bordel..


..o vermelho-veludo na parede brinca com os espelhos recortados.. as luzes espetam seu peito. Pela rua andava tranquila e abriu sóbria a porta. Jurava isso. Vestiu o ambiente trocando a pele que sorria rosada pelo olhar rubro e subterraneo da noite. Subtamente deitou-se no tempo que alí pulsava sem compasso. Deitou-se e abriu o corpo... mais forte do que toques e salivas que escorrem, olhares errados borram amores. Entre luzes, corpos e câmeras, que ensaivam ali uma representaçao mal feita de um jogo sedutor piegas, ela o via olhar o nada.. ele ensaiava uma conversa vazia ao lado.. com o corpo ao lado.. para o corpo ao lado. Vez ou outra voltava..um beijo, amor..

..vivendo a agonia da coisa mal dita pelos olhos, que erram, ela o golpeia no peito, agarra a bolsa negra e sai com o corpo atravessado por dores em longos raios finos. Pela mesma porta que entrara atravessa o veludo que chora.. antes sedutor, agora triste. E despida abisma-se em si mesma, e sucumbe.. e chove.




* Brigitte Bardot como Camille em Le Mépris, de Jean-Luc Godard.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Quarto das Letras


O abecedário do poeta
trancafiado num lugar coração
que é o quarto das letras.
Hoje é a noite
de abrir a porta desse quarto
e uma exceção:
a exceção que faz da poesia
viagem sem volta
para a areia movediça
das artes visuais.
A poesia, aliás,
está em todas as artes
e eu já vi esse filme.
Me faltava, porém,
o registro
dessa verdade absoluta.


* Excepto limitações cyberianas, a composição faz parte do projeto Quarto das Letras, selecionado pelo XXIV Salão Jovem Arte (em exposição na Galeria da Secretaria de Estado de Cultura). Segundo Loro, a idéia é inserir a poesia no terreno das artes visuais. Quarto das Letras é vontade antiga que foi adaptada para o Salão por meio de uma criação coletiva envolvendo Lorenzo Falcão, Danilo Fochesatto, Protásio Morais e I. Bê Gomes.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Mundo cerrado


Na paisagem do cerrado
a folha seca seca
a lágrima do tamanduá.
Como procurar no chão
a sombra
da asa do urubu?
As perguntas parecem vespas:
Vêm de cima, dos lados e de baixo.
E me atingem
na hora mais cheia do sol.
Aqui no cerrado, dizem,
já amanhece meio dia.
A economia do vento
que rarefaz a chuva
só precisa dar tempo ao tempo.
O pé de pequi
me dá saudades do amarelo
e a casa de marimbondo
brinca de zumbir na minha imaginação.
Entre as árvores tortas do cerrado
meus versos procuram o fim da picada.

* poema integra meu livro inédito "Mundo Cerrado". A ilustração é do nosso craque da fotografia, Mario Friedlander.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Ela não sabia. Mas eu sabia que surrupiava entranhas em noites sem lua. Que comia uma por uma e depois chupava cada coágulo do dedo indicador direito. Aliás, era exatamente o mesmo dedo que usava para contar as estrelas, que não via. Até caminhava por cima das palavras, mas preferia números e espaços em branco. Gostava com gratidão do fosso entre os vocábulos. Lia só para sentir a dor da queda entre o verbo e o sujeito. Gozava álgebra quando alguém caía no buraco que cuspia com seus adjetivos."Êta moça porreta!", dizia dela o indizível. Para mim, era macomunada com o acaso.

* a propósito, ilustração "Saltembanques", de Georges Seurat.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

De Nuevo. Hoje estive sob as nuvens. Durante o tédio, rabiscos en español e o mau hálito do senhor da poltrona ao lado, pedi uma cerveja. Então, pedi outra cerveja. Logo notei, eu estava bebendo de graça. E beber de graça é sagrado de onde eu venho.

Pedi a terceira e descemos em Vallegrand.

Fim de ano



É fácil notar o desinteresse das pessoas,
nos dentes que mastigam as unhas
e nos olhares tortos,revirados.
Mesmo pra mim,acometido pela estupidez
que escorre do quadro-negro.
Pois o silêncio zumbido da sala,é gritante...

domingo, 25 de novembro de 2007

sábado, 24 de novembro de 2007

.mais um número para o IBGE.


Abriu as mãos e se deixou furar pelas melodias mais tristes, as mais lancinantes que podiam lhe oferecer. Era apenas um agricultor xucro, um desses iletrados que tentam a sorte em cidades grandes – o velho conhecido e cafona romantismo de sempre. Um riso encardido, um terno carcomido, botas vagabundas, bigode ralo. Era uma virtuosa figura do feio, do brega: um outsider querendo expandir as cercanias ruças emolduradas por sua memória inculta. Um Paganini sem talento, um Chet Baker sem fôlego.

Há dias procurava um emprego decente, alguém que compreendesse a sua falta de educação. Coçava o sexo, cheirava a mão e pedia sem comedimentos aumentos desnecessários para a sua vidinha água e sal. Passou a usar drogas, a se apaixonar por prostitutas tatuadas, por travestis. Estava começando a desandar, a perder o rumo das partituras, os compassos quadrados do seu habitual samba rural.

Tal qual Cubas, não teve filhos. Destilava seu humor de mendigo a quem lhe estendia a mão, aos jovens que talhavam suas imagens de pessoas de bem com ações beneficentes. Trazia no peito reverberações sentimentais, amizades meia-boca e afins. Comprara um violão nas últimas semanas. Cantava uma vida sem acordes, sem afinação – guiava-se pelo aplauso e pelo riso dos transeuntes. Não foi contratado por uma major e nem fez parte de quem está fora do tal eixo.

Foi enterrado como indigente. Com ele foram encontrados, além do violão, documentos, algumas moedas, cigarros úmidos e dois terços de esperanças emboloradas. Um santinho do Lula, um anel de coco. E ainda uma lembrança dela, que por mais que ele tentasse, nunca foi apagada – sequer descolorida – de suas lembranças sem importância.



*O mendigo, de Rembrandt

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Romantismo


Nossas roupas comuns dependuradas
como um conto de fadas.
Nossos panos de bunda
em busca de um varal comum.
No amor quantificado, abunda,
a vontade de soltar um pum.


Por obséquio: texto publicado na revista dIFENRENTE, na Literamérica 2005. Ilustração: At the Concert Européen, de Georges Seurat, 88 anos antes.

O sonho acabou...?

Dia estranho aquele em que morreu o bardo,
Junto aos elfos e as ninfas.
De luto
Pan deixou de sibilar suas notas
E a fantasia foi-se junto de sua música.
Sobraram apenas restos,cadáveres.
Espectros do encanto íntimo
De odisséias que não voltam mais.
Que vagam
Como lembranças...





quinta-feira, 22 de novembro de 2007

..et voilà


..vivia só e só vivia.
entre melodias inúteis e letras mortas era quelque chose entre Esperança e Cronópio...
bem criado que era carregava o vermelho de berço, a peneira de sonhos líquidos que emprestou o avô materno e o vozeirao de pranto mal curado do pai. corpos saíam de sua vida. chegavam em sua vida. saiam de sua vida e voltavam.. com o mesmo silêncio de cipreste que usavam para beijá-lo.. assim brincava de lego com suas pecinhas de melodias melancólicas e simples.
montava simbólicamente cada ser que conhecia para logo depois desmontá-lo de raiva
por isso sofria.
por isso amava.
por isso chorava.
por isso matava.
sentia-se extremamente povoado por cada molécula alheia que o tocara um dia com intensidade bem mensurada. enlouquecido de um amor coerente e pós naftalínico vestiu La Paz como pele.. deixou bruxelas, talvez toulouse ou buenos aires.
explosoes agônicas, lata de spray barato.
ruas velhas. paredes tristes.
ça fait des siècles..
ça fait des siècles que j'attends
"ça fait des siècles que j'attends le vent du desèrt et la pluie.."

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Queres café, mi vida?

*Por obséquio: ilustração de Fernando Zarpa.

Trocou Hendrix por Piaf e pela última vez naquele minuto tentou lamber o próprio ego. Tocou o pescoço, cheirou mais um canto de parede, mastigou a porta da frente. Entrou. Nua, rasgada, quente.
O labirinto arrepiou.

domingo, 18 de novembro de 2007

Tautologia


Dinamarca. Malawi. EUA. Moçambique: no hay tango.
[But] I don't feel like dancing.
Em. Fim: pão de mel para amanhecer. A noute.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Stand in line




Sete horas, o ponto da manhã.
As ordens eram claras: roupas impermeáveis no corpo e molhadas no lixo.
Enquanto os colombianos venezianos afro-marcianos limpavam quase em desespero suas janelas pro mundo, deixei a minha embaçada só para entortar a paisagem.

Mais um dia de aula acerca, acima, íntimo e aparentemente, das coisices dentro do caminhão.

Um: aqui é meio de tarde o dia inteiro.
Dois: cachorro gosta de vento e água fria.
Três: no parabrisas água cai para cima.
Quatro: ao invés de catarata, os jardins japoneses de Monet foram pintados sob efeito vidro molhado.
Cinco: é inevitável espirrar manuelismos mesmo longe do Pantanal.
E a gota d' água: até na chuva linha reta tem limitação.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

América

roon

Aproximei o ouvido um pouco mais.
Nenhum bixo nem pêlo.

Era eu mesma pulsando. No travesseiro.

Sangue brincando nas veias.

Borbubarulhos lembrando que durante o dia, amarelos abraçam-me.


quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Televisão

De malícia e mentira, ele sabia até o refrão. Tipo alto, costeletas grisalhas e pés treinados para chegar onde tudo começa e acaba. Ficava sentado na praça vendo as fofocas passarem entre um assovio e outro minuciosamente entoados às moças que se entortavam para ver a fonte iluminada. Gostava das baixinhas peitudas. Dizia que era como voltar à infância, quando se embrenhava com as vizinhas imaginando as amigas da irmã mais velha.

Tentava emprego, mas descansava sempre no mesmo boteco. Esperava a mesa mais movimentada desocupar e puxava a cadeira antes que o garçom limpa-se tudo. Mesa bagunçada espantava sua solidão. Todos os dias remexia o cardápio e terminava pedindo ‘uma gelada’ depois de expressar dúvida entre suco de laranja e água com gás.

No bolso direito da camisa estampada carregava os óculos escuros que jurava terem pertencido a Cartola. Puxava assunto com a mesa do lado, falava sem ser ouvido sobre o senado e futebol. Batucava com os pés um samba desconhecido qualquer e comentava nota por nota depois. Gostava da sensação de música saindo pela nuca.

Bebia devagar até quando o dinheiro dava. Depois, no segundo bloco da novela, despedia-se. No caminho de volta pensava em Carlos Magno, na chuva que não veio, nas peitudas e nos classificados que mais uma vez tinha esquecido no boteco, embrulhando a vergonha.

Naquela noite chegou em casa antes da Tela Quente e encontrou Noêmia aos prantos. Descabelada, a mulher só implorava por um feriado. Abraçados, um na ausência do outro, rezaram juntos depois que um engravatado familiar disse na televisão que Madeleine ainda não tinha sido encontrada.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Vermelho


Escreveu até que os dedos perdessem a cabeça e depois reuniu causo por causo numa pintura de cão chupando manga, em canson.
O tal desenho nunca encontrou moldura.

E aí, ela assumiu a primeira pessoa e desbotou junto com ele.

Antes que a tinta criasse cor, lembrei: éramos só divagações chuvosas.

Duas gargantas.
Engolindo, seco.



quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Bemol

getty.

Protegendo a sala de antropologia do tempo, os panos de prato se faziam cortina.
Na parede, os teóricos estavam escritos em garfo e faca sujos de macarrão alho e olho.
Do calendário, todos os feriados tinham desaparecido enquanto os pentes embaraçavam os cabelos cortados com navalha enferrujada.

Olhei pro teto. O destino em setas planetárias apontava para o fundo.
Entrei no avesso e vi a retroatividade sentada numa cadeira de balanço.

Era ele.

Primo terceiro do sustenido rural.

Queimando chuva ácida. Em lâminas.


segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Reino dos ismos

públio.morales.

Sentia-se quase e nada.

Para relembrar o que não aconteceu calçava suas botas cor de pálido

e declamava poesia com eu lírico anônimo.

A falta de versos dava choro nas faixas de pedestres.


Só elas entendiam a beleza de não ser.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Um iê iê iê, por favor

Desde pequena escutava o barulho dos passos até durante a ausência de movimentos entorno. Permitia, mesmo sem saber se eram de deus ou do diabo. Era quinta-feira e seus poucos pêlos estavam encharcados de suor. Flertava com a velocidade dos pés quando desceu pela Treze e num pedaço de instante resolveu subir os degraus. Pisou somente nos mármores escuros ímpares, escolheu a segunda porta lateral e sentou-se em um dos bancos.

Ali, sentia-se plena interrompendo a única corrente de ar que ainda enganava o Sol. Olhava para cima e podia sentir a luz rasgando os vitrais coloridos divagando raios. Contava a décima quarta cor quando desistiu dos números depois de confundir azul celeste com amarelo terra.

Fechou os olhos para escutar o vento respirando sua pele do rosto criando refrões publicitários com o barulho que os cabelos faziam quando brincavam com seus brincos. Concentrou-se. Abriu os olhos, os braços e as pernas para que ele entrasse por inteiro. Esperou durante duas músicas cantadas em latim. Ele não se moveu da parede. Concentrou-se e fechou os olhos mais uma vez. Nada.

Desacreditou.

Tentou esquecer o almoço com a língua, usou a unha mais antiga e depois levantou-se. Atravessou a rua e entrou no primeiro ônibus que não passou.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Retórica

Um bloco. Um punhado de letras jogadas, abruptas e incansáveis.
Palavras se alimentando uma das outras, com força, com casca, com fome.
Ingeridas uma por uma e de uma vez só.
Com sal, pimenta do reino e adjetivos de ovos fritando.

Era gente e poesia em ebulição.

Composições primitivas brigando entre si e contra o calor sinestésico.

Mas naquele inverno já era quase noite.
E então ele molhou o indicador com pura saliva escovada na semana passada e apalpou vigorosamente cada linha de grafite.

Arrancou as vírgulas e os travessões.
Asfixiou as maiúsculas com o mesmo sopro que permutou reticências por espaços em branco.

Agora, era ele e a estória.
Ele, e suas células acentuadas.

Antes mesmo dos capítulos desfilarem abstinência circular, tentou vender três ilustrações por um ponto de exclamação.

Mas era quase dia, e as células estavam vivas.

Todas ali.

Flutuando no vinho tinto de mesa.


.


segunda-feira, 20 de agosto de 2007

domingo, 19 de agosto de 2007

Duas


a gente se guia sem pé nem cabeça.

a gente gosta de meter os pés pelas mãos!
como quem cospe no prato que comeu e belisca o arroz que sobrou;

como quem morde o próximo pedido e escolhe o doce para ter certeza que se fartou.

de repente o relógio do estômago marca duas!

duas chances: uma para sede e uma para náusea.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Ponto de ônibus

diego.olhar

seu Isidoro.
o neto.
o sul.
depois do segundo grau,
as coisas ficaram de repente...
bonictas
e musicais.


quarta-feira, 15 de agosto de 2007

feira de quarta

odeon.verão


dessas notícias que fazem o rosto da gente rir e os pés dançarem descalços sobre o chão.

carteira, holerites, meses roubados, fundo de garantia...
tudo junto, abrindo e fechando o verbo em círculos.

degustando o sol com os dedos. lambendo os dedos.

assim...

imitando gosto de samba sem letra.