segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O galo e o dia que fugiu


Chovia insignificâncias no quando em que tudo ocorreu. Não fossem os pedaços de promessa por lavras melhores caindo do céu, a tarde seria outra e mais uma das que dão a impressão de que o infinito inexiste. Nesse dia, o choro de criança brotava do chão e fazia eco no lodo que as pedras vestiam para se proteger. A alvorada logo ficou com cheiro de dia seguinte molhado e o vento rendia-se à confusão de nuvens sem rumo, soprando mais fresco entre o ir e vir dos desenhos cinzentos do teto.

Perdido no milagre do tempo o galo permanecia calado, amarrado ao pé do embondeiro. Já faziam semanas que o bicho escondia seus últimos pedaços de vida. Vivia guardando sua dor em uma silenciosa espera pelo mesmo destino de todo galo e galinha que não se preze. Já não sacudia para anunciar a previsão de chuva nem chuvisco. Sozinho, encharcava-se na tentativa de nascer em si um rio.

Do sol não se escondia mais, fazia do próprio calor sombra para seu suor. O milho também não comia e minhoca não mais procurava por pura vontade de não achá-las. Com os dias insistindo em existir, o pobre galo foi criando feição de nada. Jeito e forma de ninguém jamais.

Mesmo com o luto a cada instante mais negro em seu olhar, era aquela tarde de chuva e milagres um Domingo, e a aldeia estava animada para a comemoração. O alvoroço não esperou a tempestade passar para começar os preparativos do dia sagrado.

Enquanto os homens procuravam mais lenha e abanavam a fumaça pro fogo vingar, as mulheres equilibrando a fome na cabeça concentravam-se perto do embondeiro. As mais novas escolhiam e arrastavam os cabritos mais vistosos e a mais velha preparava a catana para sacrificar a única ave da janta.

Com passos de dança a velha se aproximou sem grandes vergonhas. O galo permaneceu estático, olhando-a nos olhos como quem sente o inverso do medo. A velha retrucou a audácia cuspindo três ou cinco palavras em Umbundo. Para anunciar o acontecido, o bicho respondeu sem dar um piu.

Antes da última gota de chuva pingar, as folhas do embondeiro começaram a cair. Uma chuva verde e água chorava do lado contrário. A velha deu um pulo de susto, mas antes mesmo do seu vingar todo o resto começou a derrubar-se do céu. Pirilampos adormecidos, vadias borboletas, raios de sol, estrelas da noite passada e até o preguiçoso arco-íris que há duas estações não enfeitava a paisagem despencou com todo o resto que se pendurava no dia. Ao mesmíssimo tempo, do chão, as areias começaram a subir num assobio terrando a árvore, o galo, a velha, os cabritos e as mais novas. De longe viu-se a imensidão castanha sufocar tudo onde a vista tentava pousar os olhos.

Não houve nem tempo de inventar o acontecido: naquele mesmo momento a aldeia se perdia no resto das sobras. Todos que moravam lá tinham ganho dor de galo. Vagando silenciosos pela sequidão do pensar.

Árvore nenhuma nasceu folha e a chuva passara a cair na forma de húmidas penas negras e douradas. Morrer galo tinha virado proibição e todos os caminhos que por ali cruzaram, a partir daquele instante passaram a levar a lugar nenhum.

O povoado tinha de permanecer em seu fim até o extremo sempre: dentro de suas próprias falta de coragem, ao pé do embondeiro amarelo, respondendo aos dizeres do mundo, sem dar um piu.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

.decoração.



.empalhei-me carinhosamente para caber em teus desejos mais sujos. fui lhano em minha singela homenagem taxonômica. o que peço tão somente agora é um suspiro.

.ou pelo menos um sincero tapa na cara.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Carnaval do Esmiril

Esse ano não tem carnaval,
Vai ser bloco do sozinho.
Ritual de passagem,
cada cultura tem suas
próprias cicatrizes.

Escarificações de adulto,
acaba o crédito, a vantagem.
Flagelo nos faz felizes,
como prova de carinho.

Esse ano não tem carnaval,
seja como for,
tuas pernas não te sustentarão
o corpo com a dor,
teus olhos transbordarão
a fraqueza do teu espírito,
o café-com-leite do teu ser...
vai querer garfo ou colher?

Este ano não tem carnaval
tua pele, chibata rasga,
teu fôlego, só que engasga:
tua alma lapidada afinal.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Coisa pequena

Aquela pedrinha entrou em mi casa sem pedir licença.
entrou e ficou ali, pelo chão, a me olhar.
escolheu a sola do meu pé pra morar.
e por ali ficou.
até que a água a levou.

Lívia Vermelha

Leve você levita
num vestido
que a veste
da beleza
invariável
de cada dia teu.

Vem e vai
com o vento
que se inventou
para ventilar o pensamento
de quem vê o vulto teu.

Sorri
com a força
da gravidade
gravíssima
que seduz quem ouve
o vinho e taça
tintos de tua voz.

Teu olho prolixo
delata sorrindo
a menina da tua feição
desposando a mulher
maldosamente escondida
na tua razão.

Preenchendo-se
explode em lava e libido
como um vulcão...
uma papoula
violenta e veloz
que entorpece
quem aspira
teu aroma.

E além de
tudo ama
e vultua
tua cabeça e alheias
venosas e vivas.
Tua alma tem o dom
de ser exata, perfeita, rubra...
sã e insana.

Revela uma guria rara
enquanto vela uma mulher paulistana.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Lamento


Passa ela o dia com a pele untada entre o calor dos doces em grandes tachos e a frieza da água ensaboando os olhos, enquanto pra cidade sai ele. Leva mochila pesada de sonhos e preocupações. Pensa, lê um folheto que vez ou outra lhe dão na estação e dorme no escuro longo da madrugada que resta. Quando chega os olhos já suportam levemente a carga de cada ladrilho como um lamento borincano. Sem que ninguém escute, cavuca despedaçando a mente e reordenando prioritariamente qual será o pacote do dia pra casa. Pão, leite, lápiz, carne... Vez e outra chora. Se distrai no almoço com a lembrança do que pediu o guri e da lista grande na porta da geladeira. Na ordem da necessidade, mulher, tenho prendido fogo no peito e soltado fatidicamente minha desdicha na sua boca cafeinada!

Hoje pobre e contente decidiu por um vestido curto de xita azul. Dolorida, a mente pediu um trago de conhaque pra esquentar a vida com a secura de um gole ardido. Um modo de esquecer o café da manhã de amanhã. No bar ao lado da casa a moeda diminuída raspou no grossor dos calos pra cair sofrida no balcão. Na porta, em voz enfeitada e larga, como um disfarce pro seu silêncio triste, ela tirou a mochila de suas costas pesadas e colocou o vestido bem passado na cama, enquanto ele a abraçava atrevidamente devagar por detrás tampando suavemente sua boca.

¡Ahora que te mueres con tus pesares, mujer, déjame que te cante yo también!