quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

.geografia da saudade.


Deixei as lembranças que nutro por ele sedimentarem no meu humilde riacho de memórias. A água estava turva no início, mas logo podia se distinguir o antes e o depois, sendo que o presente límpido refletia a todo momento um futuro menos tenso. De quando em vez eu jogava uma moeda no riacho pedindo qualquer cousa, só para ver a poeira sentimental se agitar um pouco. Só para dar aquela falta de ar angustiante, triste. Só para ter a impressão de ter visto um reflexo de algo que a gente perde e que, num relance, acha que encontrou.

Eu empurrava a minha vida com a barriga. Era um coma consciente e adrede sem poesia, uma queda. Deixava uma foto dele no altar das lembranças mais bonitas. Mas eu evitava olhar para seus olhos ou mesmo encarar o seu riso sincero e fácil. Era uma alegria lancinante, ingênua. Era como um prêmio recebido que, sem alternativas, era cultuado platonicamente por mim.

A água ficou turva de novo quando, por descuido ou instinto mal controlado, abri o baú no qual eu escondia alguns sentimentos, algumas palavras não ditas e dous ou três amplexos não sufocados. Suspirei, prendi a respiração o quanto pude para ver se o choro se engasgava, para ver se as lágrimas desaguavam numa outra represa. Meu istmo para com ele não mais estava submerso, e eu podia tão-simplesmente atravessá-lo – mesmo que sabendo das dores.

Meu filho. Agora a saudade emergia mais forte ainda. Cinco meses apenas sem ele. A água turva das minhas memórias era demasiado salgada para que eu simplesmente afundasse. Eu me afogo aos poucos, pois não há salva-vidas contra a maré da saudade.




*Imagem: mãos da Bonfim quando numa cachoeira na Chapada.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Fuga


Ela acaba de subir pelas paredes! Grita a avó assustada. Que faremos, minha filha, agora que ela se irritou com o Zé? Não se sabia ao certo, mas sentia-se, no ar frio de um dia chuvoso, que a agônica Estória se mesclava com o Absurdo e escorria por uma pontinha quebrada do quadrado da loucura. Apaixonada e não correspondida, dizem que atravessou às pressas por debaixo da perna do P e puxou para trás o braço do A manuscrito. Coitados! Gemeram de dor, disseram os vizinhos. Assim, despindo-se de cada letra oral que a compunha, derretia-se em suor e medo. Evaporava-se um pouco em cada boca que passava, mentindo e aumentando o gozo. Depois de um tempo a avó, já de toca caida, encontrou os resquício de seus dizeres numa gota de lágrima que restava gorda sem fonema algum em cima de um carro cinza, despejada no tempo, ao léu.


*fotografia, Uri Carrasco

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

É que eu tenho um pouco de pássaro. Que passa.
Descobri isso hoje, quando vi um esquilo-tigre-tatu-bolinha.
Ele atravessou a rua sem olhar para atrás, até
fazer-se árvore no pardo da falta de folhas.
Depois olhei para o lado e uma espécie de rio.
Ria.
Meio molhado.
Meio congelado.
'
Assobiei, pingando a paisagem.
Em cima de um verbo.
De agramática.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Faxina

-precisou chover pra água se sujar.
como é que ela vai se lavar?
-chuva é faxina de São Pedro
e no céu tá tudo sempre limpo (?)
-mas porque é que os santos
........ jogam sua sujeira
pras almas que necessitam de pureza?
-isso eu não sei.
pergunte a uma mãe de santo!


*Ilustração "As lágrimas de São Pedro", de El Greco

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

ainda bem. como de costume ela apareceu. rasgando. arrombando a retina, de que vê.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Pássaros



mPreciso imitar
mnnnnnnno canto dos passarinhos
mmmmmmmmantes que comece a brilhar
aaaaaaaaaaaaaakkkkkkkkkkkkkkka manhã.
mmmmmmmm Antes que um sabiá sem graça
kkkkkkkkkkkencha o seu peito laranjeira
lllllllllllllllllle o saco deste notívago.
pppppppNa forma de um poema
ooooooooesta é a minha versão
aaaaaammmmmmmmbípede emplumada
ooollllllllllllllllllllllllllllllllooodo amanhecer o’clock
zzzzzzzzzzzzzzlllllllll. . .
mmmmmmmmmmhitchcock

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Dama de Joguetes



Don Fernão estava apaixonado por uma dama que gostava de joguetes. Numa dessas, quase caiu no duelo com um nobre brother. Este distinto amigo, também estava encantado pela fria e cruel donzela, que jamais poderia se apaixonar por um deles. Ela gostava de se divertir! Uma desavença entre os dois teria sido tão patética quanto estas palavras de don Fernão em dias de tormenta por este causo:

Parte I

O tanto que te quero
é o tanto que me rasgas
O tempo passa meus meses
e parece, às vezes,
que será o mais cruel.

Cruel pouco é bobagem,
tem uns caminhos
que às vezes eu sinto,
quase nos olhos,
lacrimejantes de pensar
que se fosse uma batalha
queria escolher meus inimigos,
pelo menos...

Parece que quem escolhe
também tem que deixar o caminho escolher
e nisso um pouco morre
em favor de um amor
que se queira viver.

De onde eu tiro a guia
que vai me mostrar
a força mais suave!?
que me dê só o equilíbrio
de converter defesa em golpe,
de converter tristeza
em boa sorte.
Conceber-te em beijo forte.

Parte II

O duelo será
uma partida de tênis
um destro, um sinistro
um de rápida, um de lenta,
lado grama, lado saibro
duelarei que não me sobro
e tua imagem me alenta.

Um não safará do coração
muito partido
e temo pelo meu,
mas não tem mais volta
tenho um compromisso com a vida.

Imagem de Abigail Kamelhair

café


domingo, 13 de janeiro de 2008

Mambembe


No tratado das impossibilidades o reencontro dançava com uma poeira meio sem vento encostada nas molduras de nada; no canto da sexta-feira, em um desses bazares de estórias fantásticas. Ainda assim, naquela janela de sinestesias simultâneas, o tato aconteceu. Duas noites antes que toda a mobília da casa chegasse.
Faltava pouco para ela entrar em estado de assopro quando percorreu o tal enredo. Sentiu um ímpeto arcaico. Sentiu a falta da perna esquerda. Do peito. Dos cílios. Das asas.
Seu poema que esperava para nascer comendo vitelo de tempo já estava ali: parido por ele. Do avesso e em ordem crescente. A descoberta lunática de água no choro, a ponte sem rio embaixo e a notícia uma semana depois estampada na foto maiúscula do único jornal de São se Não do Norte, brincavam de ciranda na falta de papel.
Na cozinha de chão, o bule sem nada dentro, o ranço da manteiga e os farelos de pão dormido assistiram ao fato dentro de um silêncio estático. Era o mesmíssimo listrado encardido de toalha de mesa enrolada em seus corpos foscos.
Não era tango como outrora. Era cantiga de ninar com acordes de salsa num parágrafo rouco que dava cócegas na língua.
Gargalhando refrões de fevereiro na boca e na cintura, os dois anteciparam o carnaval dividindo o mesmo trem, torto - que estava cinco minutos atrasado para lugar algum.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

o gato-selvagem saiu, colocou as patas de marfim após a porta de pegadas e se deteve por alguns segundos. podia farejar. podia sentir o presságio que lhe fora ensinado anos atrás. logo, oculto por folhagens e visagens, viu o filhote de condor ensaiar talvez seu terceiro ou quarto vôo da vida. uma criança, um pássaro alvo. em poucas pestanas-idas, el condor fue atrapado por uma patada elegante do velho felino. a rotina versus morte. o sol se escondeu atrás da palmeira, o hemisfério flamejante, a tranquilidade do selvagem com penas nas juntas e carne en los labios.

- eu sou um gato-selvagem, nunca vi a luz da cidade. ando em minha pradaria com a sombra do condor-pai sobre mim.

.carnaval.


Olhou para o horizonte em busca de algum sentido. Não encontrou o que queria, e ainda perdeu seu único ponto de fuga plausível. Mirou bem os pés e então viu o ritmo cair, viu toda a cadência de outrora se transformar em embaraço. Voltou a levantar a cabeça, tentou com afinco superar a decepção de não conseguir enxergar além. Sem opções mais, voltou a mirar os pés. Viu a poeira alva que congelava o samba – um presente dela antes da despedida – e nem se preocupou com a iminente sujeira generalizada. Sua roupa de desfile estaria aos fiapos. Seriam os frangalhos mais requintados que um dia a passarela pudesse ver dançar. E quis apenas voltar a dançar, ficar surdo de tanto ferir a cuíca ao batuque de um pandeiro encardido. Queria isso e um pouco mais do deserto – o mesmo sobre o qual ela perguntara no final do filme, um pouco antes de pular a ponte e voar.

Não resistiu e foi calçar as botas. Estava velho demais para isso. Entrou e viu tudo pela televisão, no aconchegante quatro por quatro de um samba de polaco.

Logo ele, um crioulo doudo de rasgar dinheiro.




*Imagem roubada de algum lugar. E tal crédito já basta.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Primeiro Encontro

............Sobre o que escrever?
.'.Sobretudo, algo
como uma coisa
...podem ser duas.
.......Uma equação casual
...............que não tenha nem par,
.............................................nem cabeça.

....Coisas que o vento
..............................eu invento,
...............coisas que flor, eu sinto.
....Sinto muito e digo
pois eu, baú,
.........trancado a 2 voltas

...............do destino e um cadeado
......................................quase quebrado.
A ferrugem teve fome
...........e oxidou nossos pensamentos
.....................................termine...
............Tá bom, dou logo 2 voltas
e eu fecho o poema.

.

* a ilustração é de Paul Klee

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Soluço


Entre os fios azuis de sua peruca triste via, de resbalo, os olhos que a esperou durante meses. Mesmo longe sentiam-se quentes, quase tocavam-se. Durante uma lágrima e outra, entre a alternância do riso com o soluço escondido, um samba triste passeava por seus ouvidos fazendo-a bailar ao redor da mesa de bilhar. Cantou e soluçou baixinho até explodir o silêncio. "É mais um samba que eu faço."
.
Vez em quando dona Voz é valente e sai sem medo da garganta triste que aperta.
.
ô se é!
.
.
#foto, gettyimages.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

2008


eu acho graça
e rio de janeiro a janeiro
com boca banguela
que nem a baía da guanabara.
nenhum cristo
é mais redentor do que aqui
e nenhuma bala
é tão perdida quanto cá.
........................mesmo assim,
........................apesar de tudo,
esta cidade é um enorme tesão.
.....................que seja de urina,
....................................de purpurina
ou pela bunda linda.
entre as coxas da nossa vida
.............................dura-me
a vontade de amar.
...................boas entradas!
....................e em 2008
peça bis na hora do coito.



*adentrar um novo ano em terras cariocas é uma espécie de sorte grande para este papa-goiaba, filho de papa-banana... tudo de bom e do melhor aos que fazem e acontecem por estas cyber-bandas!



*(foto, Pablo di Giulio.)

Ano Novo

Salvo raras exceções, e entram aí as pessoas que se suicidam nessa época do ano, é tempo de urgência de tudo e fé. Botei cueca vermelha pra paixões incontroláveis, sementes de uva e romã afim de uma prosperidade básica, um branco para encontrar quem sabe alguma paz. Chequei o horóscopo pra sonhar com um ano em que coisas podem mudar e para fazer um planejamento anual completamente sonhador.Lá por volta da zero hora quando os fogos faziam o céu brilhar tive a certeza que o ano que começa agora há de ser melhor.


Bonito é a esperança que segue como que fé independente de credo, entrando na contagem também os ateus que na data também sentem aquela energia meio quente, meio amarelo-sol-radiante de começo de alguma coisa que ainda não sabemos o que é algo como um alivio de uma coisa que estava incomodando já, como uma pedrinha no sapato ou coisa assim.


É tempo de tudo e a potencialidade de novos trezentos sessenta e cinco para agir e fazer qualquer coisa faz toda a diferença pois muita coisa pra gente é função de curto-prazo quase acabando, sede insaciável e desesperadora como quase afogar no mar.


Recomeço e talvez uma forma de auto-redenção. Achar amores, fazer aquela dieta, aprender a perdoar, ajudar outros sem expectativas em retorno, e todas as coisas que cada um diz pra si mesmo sempre mas sempre acha uma desculpinha. Para todos um ano novo novinho em folha e cheio de expectativas positivas concretizáveis.