terça-feira, 21 de outubro de 2008

O nada e as coisas que voam

Até que ponto é possível sentir os sentidos? Foi a pergunta que me puseram hoje a tarde, puseram, impessoal, para não dizer que foram brisas existenciais ou passarinhos sofistas
que vieram desterrar minhas idéias de seu nicho de preguiças por mera intriga, e que de repente agora me vejo tocando meus dedos com meus dedos na estranha esperança de sentir o que meus dedos sentem em relação aos meus dedos, como reflexo que tenta tocar a mim mesmo no espelho.

Aí vem aquelas discussões todas de alteridade, ser o eu do outro, o outro do eu, objetivação do subjetivo e o eu dessubjetivado, essas coisas todas que servem para quem tem egos pequenos demais, eus ilhados, colecionadores de personalidades como borboletas secas e mortas pregadas em quadros de cortiça e com as asas dependuradas, livres, para voarem quando eu empurro ou esbarro sem querer andando pelo estreito corredor da casa. O Munsterberg fala de uma pré-lingüística que acreditava em palavras voadoras que carregavam grandes significados nas costas, e que por isso as dores vertebrais e as palavras tortas.

Vem aí um vôo de significados. Esse vai ser grande, parece que hoje eles vêm em revoada por causa dos ventos alísios do sudeste. Significados por tudo que é canto, e uns pesados demais quebraram a janela do banheiro do vizinho, tomava banho o coitado. Depois voaram de volta, saíram pela mesma janela e acabaram dando no mar, sem maiores prejuízos.

Depois vieram outros, e o próprio Munsterberg, tirando o estorvo das palavras, que agora voam livremente e se encontram com seus significados dentro de nós mesmos, quando não deles, e ouvi dizer que até daqueles outros também. Foi o que ouvi das más línguas. E aí que agora é essa bagunça, substantivos e verbos voando para todos os lados com a leveza de quem não sabe nem se ler, um bando de verbetes analfabetos de si próprios, e paredes chapiscadas e pêlos de cachorro e o cheiro estranho da gaveta do meio do escritório e o meu reflexo ou o seu na frente de mim no espelho que agora deram para não se sentir, cheirar, olhar, que ninguém me percebe mas eu percebo tudo, tudo está dentro de mim e nada está fora, mas eu preciso do nada para sentir o tudo que está dentro. Alguma coisa próxima dos banheiros que dão descarga, lavam as mãos e secam sem que você precise estar lá para cagar.

Eu preciso do nada. Um niilismo que eu não esperava a essa altura, em plena era dos sacos de plástico descartáveis dos mercados e das barras de chocolate feitas sem açúcar, glúten, gordura, lactose ou quaisquer outros ingredientes. Mas talvez por isso mesmo, que seja para acompanhar, que precisar do nada é ecologicamente correto, bom para os dentes, evita que a conversa desande em discussões partidárias, não engorda e cabe em qualquer DVD.

E aí vem o tal passarinho sofista com essa de sentir o que os outros sentem, tato sobre tato, visão sobre visão, como cheirar o nariz alheio, e eu bem que poderia soltar um só sei que nada sei, que por sinal, já é saber bastante dessa humanidade em que o nada já nem é mais tão pouco quanto era em tempos socráticos, se valorizou, foi privatizado e agora se compra em dólar.

sábado, 18 de outubro de 2008

Une mémoire pour l'oubli

Mahmud Darwich falou de café comigo como quem senta na mesa com um estranho sedutoramente aconchegante. Não nos conhecemos bem, fato. No entanto, das folhas velhas do livro que tomei emprestado ontem ele se atirou sobre mim de forma naturalmente bonita.

Há coisas que me forçam a viver sorrateira nesse sertão, já que nem tudo são cores e sons. Às vezes tais cores e sons até lambem as lascas feridas da vida, verdade. Mas nesse caso gritam ardendo de sangue e não consigo tocá-los por cegueira, ora dos ouvidos, ora das mãos.

Acho que é quando caio esquecida no fado.

domingo, 12 de outubro de 2008

O Elogio da Ignorância

Juro, meus caros e minhas caras*, enquanto as 11 páginas suavam ao Sol, o céu mudava, sorrateiro, de paisagem. Me graça é saber que ainda há quem jure que o vermelho é que é a cor de resistência! Pra mim, nunca deixou de ser o azul. Explico, antes de iniciar o capítulo, as nuvens pintavam o céu de branco, repousavam como voluptosos vestidos de noivas transbordando em paz e acalanto. Passando o ensaio, (transcreverei, a seguir, um dedo da prosa da página 66), abaixei meus braços e tirei o livro de teto. Pelo gritar do Sol, o tempo perambulava ponteiro pelo meio-dia. Depois do longa da escuridão, doze horas: tinha sido esse o período que o azul resistira para impor seu totalitarismo.
E não foi coisa à toa não!
Para onde eu, achava, que olhava, via a cor.
Alternava tons, desviava das montanhas, servia de rua para as garças dirigirem-se ao Norte, contornava galhos secos de árvores, girava pálido e intenso perto do distante... mas resistia, insistia, em ser azul.
Só então depois de tentar- sem sucesso, claro- encontra o ponto de fuga entre Erasmo,pós-independência, Laurentina, Tico o poeta, União Soviética, contrutoras chinesas, Pepetela, pinela verde, pastor-alemão e cheiro de peixe-frito**, duvidei se a cor não vagava era a procura duma toninha... toda de espuma... algas como cabelos...
Vai saber!

Apresentador: - O 1º actor está a estragar o enredo. Está a querer encarar um personagem romântico, quando afinal não possui as qualificações necessárias.
1º actor: - Como sabe?
2º actor: - Ora, cheira-se. Basta ver a sua maneira de sentar.
1º actor: - Estou sentado?
2º actor: - Está a representar que está de pé, por isso está sentado. Ou deitado. Ou não está a representar?***


* ou "caras" primeiro e "caros" depois? ou vamos de trocadilho revisto, caras e bundas? O que é mais justo, óh doutores da sabedoria?
** – infelizmente, depois do sino comprovei ser delírio de fome ou de outro professor cozinhando escondido.O almoço de domingo foi servido sem surpresas: funge e feijão –
*** O Cão e os Calús, 1985

sábado, 4 de outubro de 2008



Como de costume trocou o matabichar pelo abraçar que os lençóis ralos supriam até mais tarde. Permaneceu em posição de amamentar até o xadrês de seu pijama desfazer-se em bolhas de sabão estampadas de areia. No exato instante em que o ponteiro marcava cinco minutos para o atraso saiu abafado do quarto, ajeitando os papéis que insistiam festa-tumulto-sincronia dentro da pasta verde oliva, oliveira.

Fitou o invisível que pairava no corredor como se a areia da estampa tocasse sua pele escura. Para subir na cadeira, que compunha sobre uma bicicleta cansada a alegoria de número ímpar do internato, equilibrou-se na religião que pregava nos muros desde que a frente sul-africana rompeu os trilhos do trem o levava ainda guri ao encontro de seus avós em Huambo.

Olhava chão procurando achar tamanho maior para vestir o sorriso até que por fim, no até então, pairou no cimento batido instantes. Como um tapa: espaireceu o acontecimento.

A rara meninice da moça enfeitando uma poça pastosa de amarelidades, perto-viva, diante de suas rodas. As mãos pequenas dela que outrora escondiam castanhos, apalpavam o líquido como se planta flor em carinho de saudade. Compunham as duas um formato fixo inexistente de escorrimento pelas pernas.

Ele ficou silêncio.

Contemplou aquele filme lento fazendo cada quadro tocar as fotografias manchadas de tempo que sua mente desbotava dentro do rim, espalhando-se por tecidos e veias apertadas.
Desceu da cadeira escutando pelos pêlos o barulhinho que as últimas gotas de urina faziam ao danças no piso.

Passou pelo impossível com passos de braços.
Pulsou ares de encharcar.

Sabino sabia que pecado era não provar a existência de Deus.

Fez-se chão junto com a pintura.

Lambeu a ânsia com sufoco.

Bebeu pressa o quente que a fêmea terrou.

Sujou-se de lágrima e ferrugem.

Pela primeira vez naquela existência: ele pôs-se de Sol.

* é dessas que a gente tenta tirar sem flash na frente do palco. Dia do Herói, Coletivo de Artes Ombaka.