quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Televisão

De malícia e mentira, ele sabia até o refrão. Tipo alto, costeletas grisalhas e pés treinados para chegar onde tudo começa e acaba. Ficava sentado na praça vendo as fofocas passarem entre um assovio e outro minuciosamente entoados às moças que se entortavam para ver a fonte iluminada. Gostava das baixinhas peitudas. Dizia que era como voltar à infância, quando se embrenhava com as vizinhas imaginando as amigas da irmã mais velha.

Tentava emprego, mas descansava sempre no mesmo boteco. Esperava a mesa mais movimentada desocupar e puxava a cadeira antes que o garçom limpa-se tudo. Mesa bagunçada espantava sua solidão. Todos os dias remexia o cardápio e terminava pedindo ‘uma gelada’ depois de expressar dúvida entre suco de laranja e água com gás.

No bolso direito da camisa estampada carregava os óculos escuros que jurava terem pertencido a Cartola. Puxava assunto com a mesa do lado, falava sem ser ouvido sobre o senado e futebol. Batucava com os pés um samba desconhecido qualquer e comentava nota por nota depois. Gostava da sensação de música saindo pela nuca.

Bebia devagar até quando o dinheiro dava. Depois, no segundo bloco da novela, despedia-se. No caminho de volta pensava em Carlos Magno, na chuva que não veio, nas peitudas e nos classificados que mais uma vez tinha esquecido no boteco, embrulhando a vergonha.

Naquela noite chegou em casa antes da Tela Quente e encontrou Noêmia aos prantos. Descabelada, a mulher só implorava por um feriado. Abraçados, um na ausência do outro, rezaram juntos depois que um engravatado familiar disse na televisão que Madeleine ainda não tinha sido encontrada.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Vermelho


Escreveu até que os dedos perdessem a cabeça e depois reuniu causo por causo numa pintura de cão chupando manga, em canson.
O tal desenho nunca encontrou moldura.

E aí, ela assumiu a primeira pessoa e desbotou junto com ele.

Antes que a tinta criasse cor, lembrei: éramos só divagações chuvosas.

Duas gargantas.
Engolindo, seco.



quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Bemol

getty.

Protegendo a sala de antropologia do tempo, os panos de prato se faziam cortina.
Na parede, os teóricos estavam escritos em garfo e faca sujos de macarrão alho e olho.
Do calendário, todos os feriados tinham desaparecido enquanto os pentes embaraçavam os cabelos cortados com navalha enferrujada.

Olhei pro teto. O destino em setas planetárias apontava para o fundo.
Entrei no avesso e vi a retroatividade sentada numa cadeira de balanço.

Era ele.

Primo terceiro do sustenido rural.

Queimando chuva ácida. Em lâminas.


segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Reino dos ismos

públio.morales.

Sentia-se quase e nada.

Para relembrar o que não aconteceu calçava suas botas cor de pálido

e declamava poesia com eu lírico anônimo.

A falta de versos dava choro nas faixas de pedestres.


Só elas entendiam a beleza de não ser.