sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Mundo cerrado


Na paisagem do cerrado
a folha seca seca
a lágrima do tamanduá.
Como procurar no chão
a sombra
da asa do urubu?
As perguntas parecem vespas:
Vêm de cima, dos lados e de baixo.
E me atingem
na hora mais cheia do sol.
Aqui no cerrado, dizem,
já amanhece meio dia.
A economia do vento
que rarefaz a chuva
só precisa dar tempo ao tempo.
O pé de pequi
me dá saudades do amarelo
e a casa de marimbondo
brinca de zumbir na minha imaginação.
Entre as árvores tortas do cerrado
meus versos procuram o fim da picada.

* poema integra meu livro inédito "Mundo Cerrado". A ilustração é do nosso craque da fotografia, Mario Friedlander.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Ela não sabia. Mas eu sabia que surrupiava entranhas em noites sem lua. Que comia uma por uma e depois chupava cada coágulo do dedo indicador direito. Aliás, era exatamente o mesmo dedo que usava para contar as estrelas, que não via. Até caminhava por cima das palavras, mas preferia números e espaços em branco. Gostava com gratidão do fosso entre os vocábulos. Lia só para sentir a dor da queda entre o verbo e o sujeito. Gozava álgebra quando alguém caía no buraco que cuspia com seus adjetivos."Êta moça porreta!", dizia dela o indizível. Para mim, era macomunada com o acaso.

* a propósito, ilustração "Saltembanques", de Georges Seurat.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

De Nuevo. Hoje estive sob as nuvens. Durante o tédio, rabiscos en español e o mau hálito do senhor da poltrona ao lado, pedi uma cerveja. Então, pedi outra cerveja. Logo notei, eu estava bebendo de graça. E beber de graça é sagrado de onde eu venho.

Pedi a terceira e descemos em Vallegrand.

Fim de ano



É fácil notar o desinteresse das pessoas,
nos dentes que mastigam as unhas
e nos olhares tortos,revirados.
Mesmo pra mim,acometido pela estupidez
que escorre do quadro-negro.
Pois o silêncio zumbido da sala,é gritante...

domingo, 25 de novembro de 2007

sábado, 24 de novembro de 2007

.mais um número para o IBGE.


Abriu as mãos e se deixou furar pelas melodias mais tristes, as mais lancinantes que podiam lhe oferecer. Era apenas um agricultor xucro, um desses iletrados que tentam a sorte em cidades grandes – o velho conhecido e cafona romantismo de sempre. Um riso encardido, um terno carcomido, botas vagabundas, bigode ralo. Era uma virtuosa figura do feio, do brega: um outsider querendo expandir as cercanias ruças emolduradas por sua memória inculta. Um Paganini sem talento, um Chet Baker sem fôlego.

Há dias procurava um emprego decente, alguém que compreendesse a sua falta de educação. Coçava o sexo, cheirava a mão e pedia sem comedimentos aumentos desnecessários para a sua vidinha água e sal. Passou a usar drogas, a se apaixonar por prostitutas tatuadas, por travestis. Estava começando a desandar, a perder o rumo das partituras, os compassos quadrados do seu habitual samba rural.

Tal qual Cubas, não teve filhos. Destilava seu humor de mendigo a quem lhe estendia a mão, aos jovens que talhavam suas imagens de pessoas de bem com ações beneficentes. Trazia no peito reverberações sentimentais, amizades meia-boca e afins. Comprara um violão nas últimas semanas. Cantava uma vida sem acordes, sem afinação – guiava-se pelo aplauso e pelo riso dos transeuntes. Não foi contratado por uma major e nem fez parte de quem está fora do tal eixo.

Foi enterrado como indigente. Com ele foram encontrados, além do violão, documentos, algumas moedas, cigarros úmidos e dois terços de esperanças emboloradas. Um santinho do Lula, um anel de coco. E ainda uma lembrança dela, que por mais que ele tentasse, nunca foi apagada – sequer descolorida – de suas lembranças sem importância.



*O mendigo, de Rembrandt

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Romantismo


Nossas roupas comuns dependuradas
como um conto de fadas.
Nossos panos de bunda
em busca de um varal comum.
No amor quantificado, abunda,
a vontade de soltar um pum.


Por obséquio: texto publicado na revista dIFENRENTE, na Literamérica 2005. Ilustração: At the Concert Européen, de Georges Seurat, 88 anos antes.

O sonho acabou...?

Dia estranho aquele em que morreu o bardo,
Junto aos elfos e as ninfas.
De luto
Pan deixou de sibilar suas notas
E a fantasia foi-se junto de sua música.
Sobraram apenas restos,cadáveres.
Espectros do encanto íntimo
De odisséias que não voltam mais.
Que vagam
Como lembranças...





quinta-feira, 22 de novembro de 2007

..et voilà


..vivia só e só vivia.
entre melodias inúteis e letras mortas era quelque chose entre Esperança e Cronópio...
bem criado que era carregava o vermelho de berço, a peneira de sonhos líquidos que emprestou o avô materno e o vozeirao de pranto mal curado do pai. corpos saíam de sua vida. chegavam em sua vida. saiam de sua vida e voltavam.. com o mesmo silêncio de cipreste que usavam para beijá-lo.. assim brincava de lego com suas pecinhas de melodias melancólicas e simples.
montava simbólicamente cada ser que conhecia para logo depois desmontá-lo de raiva
por isso sofria.
por isso amava.
por isso chorava.
por isso matava.
sentia-se extremamente povoado por cada molécula alheia que o tocara um dia com intensidade bem mensurada. enlouquecido de um amor coerente e pós naftalínico vestiu La Paz como pele.. deixou bruxelas, talvez toulouse ou buenos aires.
explosoes agônicas, lata de spray barato.
ruas velhas. paredes tristes.
ça fait des siècles..
ça fait des siècles que j'attends
"ça fait des siècles que j'attends le vent du desèrt et la pluie.."

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Queres café, mi vida?

*Por obséquio: ilustração de Fernando Zarpa.

Trocou Hendrix por Piaf e pela última vez naquele minuto tentou lamber o próprio ego. Tocou o pescoço, cheirou mais um canto de parede, mastigou a porta da frente. Entrou. Nua, rasgada, quente.
O labirinto arrepiou.

domingo, 18 de novembro de 2007

Tautologia


Dinamarca. Malawi. EUA. Moçambique: no hay tango.
[But] I don't feel like dancing.
Em. Fim: pão de mel para amanhecer. A noute.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Stand in line




Sete horas, o ponto da manhã.
As ordens eram claras: roupas impermeáveis no corpo e molhadas no lixo.
Enquanto os colombianos venezianos afro-marcianos limpavam quase em desespero suas janelas pro mundo, deixei a minha embaçada só para entortar a paisagem.

Mais um dia de aula acerca, acima, íntimo e aparentemente, das coisices dentro do caminhão.

Um: aqui é meio de tarde o dia inteiro.
Dois: cachorro gosta de vento e água fria.
Três: no parabrisas água cai para cima.
Quatro: ao invés de catarata, os jardins japoneses de Monet foram pintados sob efeito vidro molhado.
Cinco: é inevitável espirrar manuelismos mesmo longe do Pantanal.
E a gota d' água: até na chuva linha reta tem limitação.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

América

roon

Aproximei o ouvido um pouco mais.
Nenhum bixo nem pêlo.

Era eu mesma pulsando. No travesseiro.

Sangue brincando nas veias.

Borbubarulhos lembrando que durante o dia, amarelos abraçam-me.