Abriu as mãos e se deixou furar pelas melodias mais tristes, as mais lancinantes que podiam lhe oferecer. Era apenas um agricultor xucro, um desses iletrados que tentam a sorte em cidades grandes – o velho conhecido e cafona romantismo de sempre. Um riso encardido, um terno carcomido, botas vagabundas, bigode ralo. Era uma virtuosa figura do feio, do brega: um
outsider querendo expandir as cercanias ruças emolduradas por sua memória inculta. Um Paganini sem talento, um Chet Baker sem fôlego.
Há dias procurava um emprego decente, alguém que compreendesse a sua falta de educação. Coçava o sexo, cheirava a mão e pedia sem comedimentos aumentos desnecessários para a sua vidinha
água e sal. Passou a usar drogas, a se apaixonar por prostitutas tatuadas, por travestis. Estava começando a desandar, a perder o rumo das partituras, os compassos quadrados do seu habitual samba rural.
Tal qual Cubas, não teve filhos. Destilava seu humor de mendigo a quem lhe estendia a mão, aos jovens que talhavam suas imagens de
pessoas de bem com ações beneficentes. Trazia no peito reverberações sentimentais, amizades meia-boca e afins. Comprara um violão nas últimas semanas. Cantava uma vida sem acordes, sem afinação – guiava-se pelo aplauso e pelo riso dos transeuntes. Não foi contratado por uma
major e nem fez parte de quem está fora do tal eixo.
Foi enterrado como indigente. Com ele foram encontrados, além do violão, documentos, algumas moedas, cigarros úmidos e dois terços de esperanças emboloradas. Um santinho do Lula, um anel de coco. E ainda uma lembrança
dela, que por mais que ele tentasse, nunca foi apagada – sequer descolorida – de suas lembranças sem importância.
*O mendigo, de Rembrandt