terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Ratazana e salamandra ou Entre Mojitos e Sangrias


A aeronave já caminhava pela pista, em breve ela ganharia velocidade e Barcelona seria um retrato espremido pela janela do avião. O sono incomodava Luiza. O seu Nessun Dorma estava chegando ao fim. O desejo teria que ser remobilizado. Em menos de 15 horas, os ouvidos voltariam a latejar o clima barulhento e seco de São Paulo.

Barcelona a havia enrolado com uma espécie de fio, uma teia sutil, e a entregou como uma órfã na porta do aeroporto. O regresso era o exercício de desinosar-se. E, seguramente, a terceira baldeação no metrô da Sé às 18h30m não estava ajudando muito. O que ela faria? Enrolar os seus companheiros de viagem subterrânea? Isolar-se num canto da casa desenrolando a si mesma enquanto escuta Lou Reed? Recorreria a Cortázar sob o risco de enrolar-se todavia más? Ou transferiria essa linha infinita para as letras ininterruptamente até ver todo o novelo que a envolvia exposto na folha branca do caderno? Seja como for, aquela realidade não estava disposta a abandoná-la, por mais que o cenário houvesse mudado. Nas primeiras 20 horas de volta em casa, lá estava ela, mergulhada numa mistura de idiomas, trazendo toda Barcelona, Amsterdan ou Berlim para o centro de São Paulo. A memória da língua trazia de volta a memória do corpo. Experiência corporal da língua que está no timbre da voz.

E é por isso que o seu corpo ainda estava lá, jogado no colchão, com o primeiro sol entrando pelas frestas da janela que Silvio acabava de esmerasse como um yoguino para fechar. Sim, não era uma simples janela. Era uma janela que exigia uma performance para ser fechada. E Luiza assistia ao espetáculo deitada, exausta pelo gozo que parecia não ter fim, mesmo que não estivessem mais transando. Sua respiração era leve, e ela parecia poder sentir a linha barcelonesca que caía garoando sob seu corpo florido.

Os pingos batiam no avião. A luz da manhã fazia as coisas parecerem transparentes. São Paulo surgia como uma espada saindo do bucho de um contorcionista engolidor de coisas. Chegar por Guarulhos era a única forma de visualizar as margens da cidade. Até a próxima viagem ela estaria completamente enredada nos entre-nós centrais de uma cidade sem horizonte, impossível de transpassar.

Ao lado do colchão, atravessando a parede, Salomão roia seus cacos de milho e buscava uma conexão com alguém que pudesse lhe conseguir algo mais apetitoso que aquele grão seco com ferragem. Por isso aquele olhar de ratão dramático empenhava-se tanto em mirar Luiza.

(continua...)

2 comentários:

pedrinha disse...

o cheiro da estrada invadia a rotina cansada. a viagem estava apenas começando e não pedia pátria ou nome para me acompanhar..

fochesatto disse...

o potencial estóico do fechar janela.