quarta-feira, 15 de abril de 2009

Dona




Quando deixou de ser miúda, a Dona parou de contar seus anos. Como tinha chegado ninguém sabia e sendo ela fluente em silêncio passava e partia desapercebida. Escondida na escuridão de sua magreza, era fácil de ser confundida com alguém que se parecesse com ela. Acostumada a observação de inconsciência, chegava cedo à praça e por cima da capulana vermelho e verde, arrumava seus tesouros com cuidado de quem os pertence.

Passava o dia repousando ao lado daqueles pedacinhos de coisa alguma: chaves enferrujadas de porta nenhuma, pernas de bonecas brancas, lado esquerdo de sapatinho de criança, escova de dentes usada e uma infinidade de pregos e parafusos que faziam confusão no acúmulo de ferrugem.

Comerciante discreta não anunciava a mercadoria e passava o dia a esperar. No fundo, rezava pra os clientes não chegarem. Era ali toda sua riqueza e por isso temia que a venda a deixasse pobre. Cada prego e preguito tinha nome e voz que só ela ouvia. E ai se alguém os quisesse comprar. Se algum interassado se aproximasse a Dona apanhava sono profundo e permanecia imóvel até que o intruso fosse embora.

Desde faz tempo que só falava com coisas de medida pequena e só criava feição de gente na hora de almoçar. Nesse momento, ganhava olhar e falação diária.

Todos os dias comia peixe seco, ás vezes engordado com um pão ou um pouco de funge. Fazia com igualdade de sequência o ritual: pegava o pano, desembrulhava o peixe e com paciência de pedra pra se formar tirava espinha por espinha do corpo do bicho.

Como relógios, os cachorros e toda a criançada de perto esperavam ansiosos para a fome passar. A Dona não se incomodava com o tumulto e continuava presa em si limpando a carne. Depois de ter um punhado extremo de espinhas ela dava o peixe pra as gentes e comia as espinhas: uma por uma. Saboreando cada pedacinho. Brincava com a língua na falta de cantos da comida, passeava com ela no céu da boca, chupava toda a sobra de mar e engolia tudo sem mastigar.

A malta da praça dizia que era coisa de feitiço isso de comer espinha. Nessas horas de ser, ela explicava que espinha era igual problema e sendo assim, a vida precisava. Falava que os ossinhos eram de construir lugares dentro de sua barriga. Jurava que tinha dentro do corpo tudo que os olhos viam do lado de fora. Explicava que as espinhas juntavam-se e desajuntavam-se dependendo do piscar de olhos: prédios, casa de chapa, taxi, cabrito, praça. Reproduzia tudo entre as tripas e o vazio do estômago.

A Dona de nadas, cheia de explicações para a falta de entendimento investia o tempo na imitação da paisagem dentro da sua própria carne. E carregar o mundo em seu ventre bastava-lhe à existência.

Um comentário:

ester disse...

me gusta tu sentimento menina!!