sexta-feira, 20 de março de 2009

A chão coberto

Enquanto os outros costuravam a ponto-cruz, ele brincava de ponto-de-vista. E foi construindo sua desordem com metáforas e números imaginários. Não gostava de interrogação e contentava-se com respostas de três pontos. Dizia que tinha esperado um ano inteiro pra nascer, por isso não tinha pressa e só fazia aniversário em dia de eclipse.
Nunca fora a escola, mas contava estrelas ao meio-dia e as pontas das coisas. Sabia, por exemplo, quantos cantos tinham uma mesa, uma tesoura, uma rosa, um violão e um passarinho. Sabia também quantas mesas, tesoura, rosa, violão e passarinho tinha seu canto de ser.
Vivia a ilusão dos outros e se sentia morrer quando inventavam continuação para o assunto. Preferia silêncios, mar e tesouros como conchinhas e madrugadas que não evelhecem.
Diziam dele imitações e que era a mãe de sua própria naturaleza.
Ele se ria do falar e só se doía quando paria palavras compridas. As amamentava até que tivessem vida própria. Explicava, "mesmo que difíceis de pronunciar quando crianças, tem de se criar porque depois cabem até da boca de uma gotinha do orvalho". Até as mentiras floriam com suas explicações de ás vezes.
Sumiu numa terça-feira ao pôr-do-sol.
Há quem diga que saiu correndo deitado na chuva. Outros juram que o viram transformar-se em estatísticas, dicionário bilíngue e giz de cera derretida em pleno veleiro em alto mar. E ainda há gentes gastando grana preta pra (des)acreditar.

Nenhum comentário: